
Todos nós sonhamos. Independente de acharmos que dormimos “no vazio”, o cérebro produz narrativas intensas todas as noites, misturando memórias, emoções e estímulos neurológicos que ainda não compreendemos por completo. Mas existe um mistério intrigante: por que algumas pessoas se lembram de seus sonhos com nitidez cinematográfica enquanto outras acordam com a sensação de que nada aconteceu? A ciência ainda não tem uma resposta final, mas já existem pistas fascinantes.
A primeira diferença relevante está na forma como o cérebro consolida memórias durante a fase REM do sono. Esse estágio é marcado por intensa atividade neural, quase comparável ao estado de vigília. Pessoas que se lembram de sonhos apresentam uma ativação maior em áreas ligadas à atenção e processamento consciente enquanto dormem. É como se parte da mente permanecesse “ligada”, observando a experiência enquanto ela acontece. Já quem nunca recorda sonhos costuma ter baixa ativação nessas áreas, resultando em experiências oníricas que simplesmente não ficam registradas.
Outro fator chamativo é o microdespertar. Pessoas que lembram sonhos tendem a acordar rapidamente durante a noite sem perceber. Esses pequenos despertares funcionam como uma ponte entre o sonho e a memória consciente. Sem esse momento de transição, o cérebro pode descartar o conteúdo durante o processamento do sono, da mesma forma que um computador fecha abas sem salvar.
Personalidade também pode influenciar. Estudos sugerem que indivíduos mais criativos, introspectivos ou emocionalmente sensíveis tendem a registrar sonhos com maior clareza. Não porque sonham mais, mas porque atribuem significado interno às experiências e prestam mais atenção aos detalhes subjetivos. Para o cérebro, aquilo que tem relevância emocional tem maior chance de ser armazenado.
Outro detalhe curioso está na química cerebral. A produção de norepinefrina, um neurotransmissor envolvido na consolidação de memória, fica extremamente baixa durante o sono REM. Isso significa que biologicamente não somos programados para lembrar da maior parte dos sonhos. Ainda assim, algumas pessoas possuem variações hormonais, metabólicas ou neurológicas que podem atenuar esse efeito, facilitando o registro consciente do que é vivido durante a noite.
Há também o papel da expectativa. Quem escreve diário de sonhos, medita antes de dormir ou estabelece intenção de lembrar tende a ativar áreas cognitivas relacionadas à atenção na próxima manhã. Isso cria um ciclo: quanto mais você tenta lembrar, mais seu cérebro passa a registrar. Quem ignora sonhos, por outro lado, treina a mente a descartá-los automaticamente. A memória onírica pode ser fortalecida como um músculo.
Esse fenômeno ganha um componente ainda mais profundo quando pensamos na função dos sonhos. Há teorias que sugerem que eles servem para organizar memória emocional, ensaiar cenários sociais, simular perigos ou simplesmente limpar resíduos mentais do dia. Se for verdade, talvez algumas pessoas se lembrem mais porque seus cérebros usam os sonhos como ferramenta ativa de processamento psicológico — enquanto outras realizam o mesmo processo de forma silenciosa e inconsciente.
O mais curioso é que lembrar sonhos demais também pode ser um problema. Pessoas que recordam cada detalhe costumam ter sono mais fragmentado, dificuldade de descanso profundo ou tendência a despertares frequentes. Ou seja, o esquecimento, em certo sentido, pode ser um mecanismo saudável para proteger o descanso.
Tudo isso nos leva a uma conclusão intrigante: não existe “lembrar mais” ou “lembrar menos” como sinal de inteligência ou espiritualidade. O que existe são diferentes formas de o cérebro lidar com experiências noturnas. Algumas mentes arquivam; outras apagam; outras transformam sonhos em material consciente.
Se você quer lembrar mais, pode treinar seu cérebro. Algumas estratégias funcionam muito bem:
anotar o que lembrar imediatamente ao acordar
evitar telas nas últimas horas antes de dormir
acordar sem despertador barulhento
dormir em ciclos completos
criar intenção consciente antes de dormir
Com consistência, mesmo alguém que acha que “não sonha” pode descobrir um universo inteiro que sempre esteve lá, apenas escondido atrás do esquecimento.
Sonhar é inevitável. Lembrar é opcional. E talvez a parte mais misteriosa seja que, mesmo sem perceber, cada noite contém um filme inteiro passando dentro da sua mente — silencioso, efêmero e extraordinário.